Pais na gestão da escola: mudam as relações?
Uma análise sociológica de uma instituição judaica.
Diana Mandelert


Resumo

        Na perspectiva das pesquisas que visam a problematização da relação família - escola, a presente pesquisa tem o interesse de analisar estas relações em uma escola judaica na qual o envolvimento familiar faz parte da sua estrutura. Esta investigação teve como material empírico o survey da pesquisa Processo de Produção de Qualidade de Ensino. Escola, família e cultura, do SOCED, Grupo de Pesquisa em Sociologia da Educação. O survey foi composto de três questionários: alunos, pais e professores, aplicados em 9 escolas anualmente apontadas pela imprensa entre as melhores do Rio de Janeiro. Além disso, foram feitas observações no Diretório de Pais, órgão de gestão máxima da escola e entrevistas com os coordenadores da escola judaica. Através da pesquisa foi possível estabelecer a influência do capital cultural e social nas relações família-escola, mesmo em instituições de prestígio como as do survey. Quanto à gestão de pais, observamos a separação da gestão pedagógica e da financeiro-administrativa, a primeira efetuada pelos profissionais da escola e a segunda efetuada profissionais administrativos da escola com o auxílio do Diretório de Pais. Esta separação nos indica um caráter mais simbólico do que atuante do Diretório de Pais. A existência deste espaço definido de poder dos pais dá a dimensão do valor do controle da formação escolar dos seus filhos.


Palavras-chave

        Relação família – escola, camadas médias e altas, escolas de prestígio, escola judaica, capital cultural, capital social.


Abstract

        In the perspective of the researches which aim to analyse the family-school relations, the current work has the objective to study those relations in a jewish school where the family involvement is part of the structure. This investigation had as empirical material the survey Production Process in Teaching Quality. School, Family and Culture, from SOCED, Group pf Research in Sociology of Education. The survey was composed by three distinct questionnaires: students, parents and teachers, submitted in 9 schools annually appointed by the press as Top schools in Rio de Janeiro. On top of that, physical observations were done in the board of parents who has the final responsibility to manage the school, and interviews were conducted with the coordinators of the jewish school. Through the research it was possible to establish the influence of the social and cultural capital in the family-school relations, even in prestige schools as the ones in the survey. In the terms of parents management it was noticed clear segregation of educational from financial-administrative management. The first one being conducted by the school professionals and the second one by the administrative professionals supported by the board of parents. This segregation points out more to a symbolic rather than effective participation of the board of parents. The existence of this defined space of parent's control gives the dimension of their importance in the children school background.


Keywords

        Family-school relations, upper and middle classes, Top schools, jewish schools, cultural capital, social capital.

        Quando entrei para o SOCED, em 2002, estava sendo desenvolvida a pesquisa: Processos de Produção de Qualidade de Ensino. Escola, família e cultura. O objetivo era compreender como as características institucionais e familiares interagem na produção da imagem de qualidade de ensino e excelência escolar com base na investigação de algumas escolas anualmente apontadas pela imprensa com os melhores desempenhos no vestibular do Rio de Janeiro. Além disso as escolas foram escolhidas também por oferecerem perfis variados. Assim, a amostra compõe-se de: 2 escolas bilíngües, 2 confessionais, 2 alternativas, 2 públicas e 1 judaica. O critério da seleção das escolas foi o definido por Levin como "não-casual de julgamento ou conveniência", de acordo com o qual "a lógica, o senso comum ou um julgamento equilibrado podem ser usados na seleção de uma amostra que seja representativa de um grupo maior (população)" (1987, p.120)1.

        Para realizar a pesquisa foi construído um survey composto de três questionários: alunos, pais e professores. O questionário dos alunos foi aplicado em sala de aula para alunos de 8ª série. Esta faixa etária foi escolhida por esses jovens apresentarem características dos dois segmentos – fundamental e médio – portanto, ainda não têm a autonomia dos estudantes de ensino médio, mas também não são tão tutelados pelas famílias como nas séries iniciais do ensino fundamental.

        Os alunos após responderem o questionário em sala de aula, levaram o questionário de pais para casa e o devolveram à secretaria da escola. O questionário de professores foi distribuído pelos coordenadores e diretores das escolas para os professores das turmas de 8ª série e do ensino médio e entregue à equipe do SOCED pelos coordenadores das escolas. A forma utilizada na aplicação dos questionários dos alunos garantiu a totalidade dos alunos de 8ª série dessas escolas. O retorno do questionário de pais e de professores foi desigual entre as instituições. Acreditamos que o baixo retorno do questionário de pais seja em decorrência da atitude dos alunos que não entregaram os questionários a seus familiares, tendo em vista as características apuradas daqueles cujos pais não responderam ao questionário. No caso dos professores, levantamos como hipótese a possibilidade da falta de sigilo por conta da intermediação da coordenação. Isto pode ter causado o retraimento por parte dos professores.

        A inclusão da escola judaica fazia sentido, não só por ter sido considerada uma das 15 melhores escolas do Rio de Janeiro, como por estar a comunidade judaica historicamente situada nas camadas médias e altas da sociedade brasileira. Isto acontece ainda que esta comunidade tenha uma representatividade muito pequena no cenário nacional – menos de 0,1% da população em um total de 86.825 judeus no Brasil2 . Desde quando chegaram em maior número, na década de 20 e 30, os judeus imigrantes foram principalmente para três grandes centros urbanos do país: Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Sua estrutura ocupacional era particular em relação aos demais imigrantes: sua presença era pouco expressiva no proletariado urbano que começava a se estruturar, pois na sua maioria eram comerciantes ou desenvolviam pequenos empreendimentos domésticos3

        Outro ponto de interesse em pesquisar uma escola judaica é o tipo de envolvimento que existe nestas instituições com as famílias. Todas as escolas judaicas – fora de Israel – são comunitárias, não têm fins lucrativos e são geridas pelos pais de forma voluntária. Ocorre que o envolvimento das famílias com a escola é visto por uma vasta literatura como um fator preditivo de sucesso escolar. Ou seja, quanto maior o envolvimento das famílias com a escolarização dos filhos maiores chances de sucesso escolar. Ao mesmo tempo, a relação família-escola é sabidamente complexa, marcada por uma variedade de fatores que podem ajudá-la a se desenvolver muito bem ou não.

        As tensões deste diálogo têm muitas causas. Os pais estão sempre diante de um corpo profissional estruturado há muito tempo. Além do que a escola opera um conjunto de transformações na vida familiar que não é nada desprezível. A instituição escolar especifica os horários e gastos das famílias, exige tarefas, interfere com seus julgamentos, faz brotar tensões e esperanças nas crianças e em seus familiares. De acordo com os dados gerais do survey, por exemplo, metade das famílias assinala gastar 15% do seu orçamento familiar na escolarização dos filhos. Outra tensão é que o filho representa em parte um veredicto sobre a educação familiar, ou seja, o sucesso ou o fracasso dos pais. Outra causa é a "ideologia da participação" por parte dos pais (Montandon, 1987). Esta ideologia surge com o aumento da escolaridade dos pais e a difusão do discurso especializado sobre a educação das crianças na mídia. Além disso, as famílias têm cada vez mais uma relação com a escola caracterizada pelo consumo, isto é a escola presta um serviço e portanto, tanto os pais e como seus filhos têm direitos em relação à escola.

        Assim, o meu problema de pesquisa foi analisar as relações em uma escola de prestígio na qual o envolvimento familiar faz parte da sua estrutura. Minhas perguntas principais eram: Será que a participação dos pais na escola judaica interferia mais nesta relação em comparação com as outras escolas investigadas pelo SOCED? O que existe de diferente na escola judaica?

        A primeira particularidade das escolas judaicas é que elas podem ser religiosas ou não. A escola estudada é da vertente culturalista. Apesar de ser fundamentada em uma religião, a escola é laica, não é religiosa. Esta distinção é muito importante, pois nenhuma escola judaica laica aceita ser denominada de religiosa. As escolas judaicas laicas estão baseadas na possibilidade de ser judeu e não ter religião. Assim, o que é ensinado nesta escola é a cultura judaica, suas tradições, a língua que é o Hebraico, sua literatura, o folclore e a visão filosófica de mundo que é fornecida pela religião. Muito diferente das escolas religiosas que ensinam a religião fundamentada na fé, em princípios por sua natureza dogmáticos (Guinsburg, 1977).

        A escola judaica tem, dentre outras, duas funções extremamente importantes: a transmissão de valores judaicos para a formação de uma identidade e é um ponto de encontro para os judeus espalhados pela cidade. Tratando-se de uma minoria cultural esta convivência escolar é fundamental, é lá que haverá a vivência da cultura, o reforço da identidade judaica e a possibilidade de conhecer outros judeus. A escola atua, desta forma, no sentido da perpetuação da comunidade judaica.

        Para compreender a situação da escola judaica realizei como trabalho de campo a observação de 12 reuniões do Diretório de Pais, que é órgão máximo da instituição. Fiz também entrevistas com os coordenadores da 8ª série, do Ensino Médio e de Ensino Judaico. Das reuniões de pais promovidas pela coordenação da escola, observei uma do 1º ano do Ensino Médio .

        O Diretório de Pais é formado por pais voluntários, sendo coordenado pelo presidente da escola que também é pai de aluno. O pai candidato à presidência forma uma chapa que é eleita pela comunidade de pais a cada dois anos. Esta diretoria tem como função designar e apoiar os profissionais que administram a escola, de acordo com o espírito dos fundadores. Os pais-diretores ajudam nos diversos segmentos da escola, tais como finanças, transporte, segurança, eventos, concessão de bolsas e etc. No organograma da escola, abaixo dos pais encontra-se o corpo de profissionais, supervisionado pela direção geral, responsável tanto pela parte pedagógica quanto pela parte administrativa.

        O tempo dedicado pelos pais-diretores à escola não é desprezível: representa no mínimo as três horas de duração das reuniões semanais, além de outros encontros que os pais-diretores porventura tenham. Fazer este tipo de trabalho voluntário é constituinte da identidade judaica, é o que eles denominam de "serviço comunitário". Um dos pais do Diretório disse que ser voluntário na escola é como ser síndico de prédio: a pessoa trabalha para que a comunidade tenha êxito como um todo. Este tipo de trabalho faz parte das características do que é uma comunidade, que de acordo com Merton e Lazarsfeld5:

 
É preciso que aceitem participar da gestão de seus negócios, sacrificando para isso uma parte de seu tempo e de seus recursos. A comunidade supõe uma participação mínima nos negócios comuns, de forma direta ou indireta.

        Nas reuniões estão presentes apenas os pais-diretores, os profissionais só comparecem pontualmente quando são chamados para elucidar alguma questão. Os temas de maior recorrência nas reuniões são os de ordem financeira e administrativa. Assim assuntos como o transporte escolar, o seguro da escola e a captação de alunos foram abordados diversas vezes. No primeiro encontro que tive com o presidente da escola, este afirmou que existe uma "blindagem" do corpo pedagógico "contra" os pais, e o presidente da escola procura manter essa autonomia. O vice-presidente e outros pais-diretores também fizeram depoimentos neste sentido. A direção pedagógica também realiza uma barreira entre o Diretório de Pais e os professores. O presidente e uma das coordenadoras relataram a situação em que o Diretório de Pais pediu a demissão de um determinado professor à Direção Pedagógica. Como a Direção Pedagógica nunca tinha feito qualquer advertência ao professor, quiseram dar uma chance a ele, o que foi respeitado. Vemos aqui o limite imposto pelos profissionais da educação à participação dos pais, já salientado pela literatura. Os profissionais são os que possuem os conhecimentos técnicos necessários para instruir os alunos.

        Assim, a minha hipótese inicial de que uma escola gerida pelas famílias teria uma influência legitimada dos pais para interferir nas atividades fins da escola foi revista. Mesmo com as famílias tendo um órgão como o Diretório de Pais, várias vezes sua atuação fica restrita pela falta de conhecimento técnico da área pedagógica. Não só os profissionais estabelecem limites, como muitos pais não se sentem confortáveis em interferir nesta seara.

        Nas questões específicas do survey sobre o envolvimento dos pais com a escola não pude verificar diferenças entre a escola judaica e as demais. O alto investimento na escolaridade dos filhos que estas famílias fazem pode ser observado tanto nas situações em que a escola promove, quanto nas situações em que algo as incomoda. A maioria das famílias assinala ir à escola em todas as situações. As famílias da escola judaica indicam ir à escola um pouco menos do que as outras famílias "quando algo as incomoda". Provavelmente este dado esteja influenciado pelo costume dos pais de ligarem para a escola ao invés de comparecerem pessoalmente. Nas entrevistas com as coordenadoras, estas mencionaram que as famílias seguidamente tentam resolver os problemas dos filhos por telefone, em conseqüência deste hábito muitas elas conhecem até pela voz.

        Tabela 1 - Freqüência absoluta e relativa das ocasiões em que os pais vão à escola segundo a tipologia das Escolas

    Judaica Bilíngüe 2 Confessional 2 Alternativas Públicas Total
Quando convocados individualmente Sim Freq. 27 25 53 41 88 234
% 100,0% 96,2% 93,0% 93,2% 92,6% 94,0%
Quando algo incomoda Sim Freq. 21 25 49 37 79 211
% 77,8,% 96,2% 87,5% 88,1% 84,9% 86,5%
Festas e ocasiões especiais Sim Freq. 23 22 49 37 68 199
% 85,2% 84,6% 87,5% 86,0% 73,9% 81,6%
Em reuniões de pais Sim Freq. 23 26 52 35 87 223
% 85,2% 100,0% 92,9% 79,5% 92,6% 90,3%

Fonte: SOCED: Pesquisa Processos de Qualidade de Ensino. Escola, família e cultura. 2004.
As células devem ser lidas de forma independente.


        A proximidade das famílias não é percebida pelos professores como excessiva, pois nenhum dos respondentes do survey assinalou esta opção. As famílias da escola judaica são consideradas presentes por 43% dos professores respondentes e presentes nas situações de crise para 50%. Acredito que metade dos professores ter assinalado que as famílias estão presentes somente nas situações de crise, mais do que revelar um distanciamento das famílias, deve ser interpretado como uma conseqüência das famílias tenderem a conhecer mais os coordenadores do que os professores.

Tabela 2 – Freqüência absoluta e relativa da Atitude mais freqüente das famílias sobre a escolarização dos filhos pelos professores

    Judaica Bilíngüe 2 Confessional 2 Alternativas Públicas Total
Atitude mais freqüente das famílias sobre a escolarização dos filhos.  Presente Freq. 6 12 10 19 18 65
  % 42,9% 57,1% 37,0% 63,3% 46,2% 49,6%
Presente somente nas situações de crise Freq. 7 8 15 11 19 60
% 50,0% 38,1% 55,6% 36,7% 48,7% 45,8%
Ausente Freq. 1 1 2 0 2 6
% 7,1% 4,8% 7,4% ,0% 5,1% 4,6%
Total Freq. 14 21 27 30 39 131
  % 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: SOCED: Pesquisa Processos de Qualidade de Ensino. Escola, família e cultura. 2004.


Tabela 3 – Freqüência absoluta e relativa do conhecimento dos pais dos profissionais da escola dos filhos segundo a tipologia das escolas

    Judaica Bilíngüe 2 Confessional 2 Alternativas Públicas Total
Você conhece os seguintes profissionais da escola de seu filho?
Respostas afirmativas 
Professores Freq. 10 41 23 26 19 119
% 35,7% 56,2% 15,1% 60,5% 20,2% 30,5%
Coordenadores Freq. 21 40 82 36 36 215
% 77,8% 54,8% 53,9% 83,7% 38,3% 55,3%
Diretores Freq. 20 56 65 30 38 209
% 74,1% 76,7% 42,8% 69,8% 40,4% 53,7%

Fonte: SOCED: Pesquisa Processos de Qualidade de Ensino. Escola, família e cultura. 2004. As células devem ser lidas de forma independente.


        Lareau (1987) destaca a influência do capital cultural na relação das famílias com as escolas. Na classe trabalhadora os pais consideram que escola e família têm funções específicas e independentes. Já os pais de classes médias altas fundamentam suas ações na perspectiva da interdependência entre a família e a escola.

        Nas teses e dissertações sobre pais de classes populares que analisamos, o mesmo comportamento distante de pais das camadas populares com relação à escola foi assinalado, assim como a desqualificação dos pais por parte dos professores por conta desse comportamento. Se compararmos com a escola estudada, vemos mais uma vez a importância do capital cultural das famílias para sua maior integração com o trabalho escolar. De acordo com a fala da coordenadora de ensino judaico:

 
 "A maioria dos pais tem formação universitária, quer dizer um nível cultural elevado, um nível de exigência elevado em relação à qualidade pedagógica da escola. A maioria dos pais tem um julgamento crítico, crítico no sentido de tem capacidade de fazer um julgamento do trabalho escolar, da nossa opção pedagógica, não necessariamente crítico positivo ou negativo, tem muita noção, tem muita familiaridade com os métodos modernos acompanham etc." (Coordenadora do ensino judaico).

        Ribeiro (2000) observou que apenas 40% os pais das escolas públicas se sentem à vontade para se posicionar nas reuniões de pais. Já nas escolas privadas os pais "são unânimes em afirmar que as críticas ou sugestões que eles lançam à escola, aparentemente são acatadas pela direção e professores, mas nem sempre levadas em conta" (ibid, 49).

        Nas escolas de prestígio investigadas não pudemos observar correlações entre o capital cultural das famílias com o nível de conhecimento dos profissionais das escolas, nem com a participação das mães na vida escolar dos filhos. As famílias com níveis de escolaridade mais baixo não apresentaram nenhuma especificidade neste sentido. Provavelmente o que ocorre é como Brandão6 salienta:

 
mesmos aqueles que procedem de camadas menos providas de capital (econômico, cultural ou social), uma vez as freqüentando, estariam, de alguma forma, referidos às elites. Através dos investimentos em estratégias educativas e escolares próprias das elites, suas famílias estariam apensando capital simbólico às credenciais escolares e, simultaneamente, garantindo sua aproximação social de setores das elites, o que potencializaria a aquisição de novas formas de capital.

        A diferença no conhecimento que as famílias têm dos profissionais das escolas públicas e confessionais em relação às outras escolas talvez decorra da estrutura dessas instituições. A maioria destas escolas tem tradição centenária o que contribui para um maior distanciamento nas relações família-escola, pois a antiguidade das instituições e da estrutura do corpo profissional das escolas reforça a desigualdade das relações. Observamos uma reunião de pais em uma das escolas confessionais e a impressão que tivemos foi dos profissionais "ensinando" os pais como educar seus filhos. O coordenador alertou sobre a necessidade de que os alunos dormissem um determinado número de horas, e que para isso era necessário o controle pelos pais do tempo dos filhos no uso do computador e na televisão. A reunião ocorreu em um sábado de junho, sendo que apenas alguns dos professores estavam presentes para se apresentar para os pais. Como o contato mais estreito ocorre só quando o aluno apresenta algum tipo de problema e normalmente este contato é feito com os coordenadores, a tendência é que os pais de fato não conheçam os professores dos seus filhos.

        A pesquisa de Horvat et al. (2003) demonstrou que o "fechamento intergeracional" de Coleman (1988, 1990), que é a rede social que liga os pais a seus pares nas escolas, é primordialmente um fenômeno da classe média. A partir da base empírica etnográfica, com as informações das famílias de 88 crianças, este trabalho teve como objetivo descrever as várias naturezas das redes sociais, explorando as diferenças de classe na mobilização ou na ativação das redes sociais pelos pais no contexto escolar. De acordo com a pesquisa, essas redes sociais se formam, pelo menos em parte, como o resultado da participação das crianças em atividades organizadas, o que é mais freqüente na classe média. Em contrapartida, a classe trabalhadora e famílias mais pobres exibem uma forma de "fechamento intergeracional" que é circunscrita ou limitada pelas relações de parentesco. Em geral, as redes sociais observadas nas classes trabalhadoras e nas famílias mais pobres não incluem ligações com a escola ou com atividades que as crianças realizam. Essas diferenças nas redes sociais influem no modo como são abordados os problemas da escola. Pais da classe trabalhadora e de famílias pobres tendem a resolver suas questões de forma individual e a não receber suporte de suas redes sociais para isso. Em contrapartida, pais de classe média reagem por vezes de forma coletiva, ou então, atuam individualmente mas mantêm a possibilidade de um envolvimento coletivo.

        Podemos observar este fenômeno na escola judaica. O nível de conhecimento que esses pais têm entre si7 faz com que os problemas sejam abordados muitas vezes de forma coletiva, ainda que não de forma organizada através da diretoria de pais. De acordo com o depoimento da coordenadora, os pais se encontram nas festas de Bar Mitzva8 , nos movimentos juvenis e nos clubes; nestes ambientes conversam sobre os problemas de escola. Quando vão falar com a coordenadora sobre a atitude de um professor já é no coletivo, isto é, falam em seu nome e da pessoa com quem conversaram no evento social. Esta atitude representa uma mudança no tipo de poder que as famílias têm em relação à instituição, normalmente restrita apenas ao âmbito individual. Isto sem falar na hipótese de se apresentarem ao Diretório de Pais para falar dos seus problemas, Essa possibilidade parece bem mais uma dimensão simbólica do poder potencial dos pais de intervir na escolaridade do que uma prática freqüente; nas reuniões de que participei não presenciei nenhuma situação em que esse poder se manifestasse.

        Na tentativa de compreender melhor as características das famílias da escola judaica, pedi aos três coordenadores e a psicóloga que as dividissem em subgrupos. Houve uma congruência muito grande quanto aos tipos estabelecidos pelos coordenadores, ou seja, os profissionais salientaram a existência de famílias "parceiras", "misturadas" 9 e aquelas com problemas com a carga de judaísmo (o coordenador do ensino médio não mencionou estas famílias, acredito por ser a carga de judaísmo bem menor neste segmento). Abordarei neste artigo apenas as famílias caracterizadas como "parceiras" e misturadas".

        O primeiro grupo citado por todos foi o das famílias "parceiras": são famílias que identificam a escola como um bem da comunidade, não apenas uma prestadora de serviço. Estão em contato permanente, valorizam a troca com os profissionais da escola.

 
"Esse é um tipo de família que está muito identificada com ação da escola, reconhece que os papéis são diferentes, o que é dela e o que é da escola e se compromete. Senta aqui numa entrevista e ouve e discute (…) Combinamos isso e isso acontece"(psicóloga da escola judaica).

        A representação dos coordenadores da escola de que as famílias da escola judaica são mais presentes do que as de outras escolas em que já tenham trabalhado deve ser relativizada pela própria resposta ao questionário dos pais. Em nenhuma das questões sobre a presença dos pais a freqüência da escola foi significativamente maior do que a das outras escolas estudadas. Todas as escolas apresentaram freqüências altas de participação dos pais; apenas as escolas confessionais tiveram números um pouco mais baixos. Os professores respondentes da escola judaica também não assinalaram em maior proporção as famílias como presentes se comparado com as outras escolas.

        Algumas famílias foram consideradas "invasivas" ou "misturadas" pelos coordenadores. Estas são caracterizadas como aquelas que falam com os profissionais determinando como deve ser o trabalho pedagógico:

 
"O que acontece aqui na escola é que isso às vezes fica muito misturado, porque como pai, ele administra, ele gerencia, ele financia. Isso às vezes para alguns, (não é a totalidade absolutamente não é), faz com que eles se sintam mais autorizados a dizer como que eu, que sou contratada pela escola, ou o professor que também é contratado pela escola, deve se conduzir. Com muita freqüência: 'eu acho que você tem que diminuir a grade curricular de tal matéria", "eu acho que você tem que suspender aquele aluno', 'você não pode deixar esse pai agir desse jeito'."

        Talvez possa parecer que se trata do que Lahire denominou de "direito educativo de ingerência dissimétrico": "os pais se vêem sendo aconselhados sobre a maneira de agir com seus filhos, mas os professores não gostam que lhes digam o que devem fazer" (1997, p.337).

        Estas poucas famílias, de acordo com a fala dos coordenadores, não precisam estar necessariamente vinculadas ao Diretório de Pais. Isto confirma as minhas impressões, pois apenas um dos participantes pareceu ter este tipo de conduta. Sendo que, ao mesmo tempo em que havia este pai "misturado", havia outro muito preocupado em não interferir nos assuntos pedagógicos da escola. De acordo com sua opinião, não poderia fazê-lo pois não era um profissional do assunto. Este pai também demonstrou preocupação com os pais que interferiam de maneira inadequada na estrutura da escola:

 
"eu acho que tem pessoas que confundem a posição de estar na diretoria e são muito invasivas mesmo e ali são profissionais trabalhando. Nós não somos profissionais da área de educação."(pai-diretor)

        Este tipo de família, no entanto, não constitui um número relevante. Como já dissemos anteriormente, nenhum professor do survey considerou excessiva a presença dos pais na escola, as alternativas escolhidas foram presente, presente apenas nas situações de crise e ausente, sendo que esta última foi assinalada por apenas um dos professores respondentes da escola judaica, e por 6 professores do conjunto das 9 escolas investigadas. As respostas dos questionários dos pais apontam para a mesma direção, apenas um dos pais assinalou questionar a escola quando os resultados dos filhos não são bons, em um total de três de todas as escolas. Para mais da metade dos pais a opção mais adequada nesta situação é dar apoio aos filhos.

        Apesar de ter sido apontada como uma característica típica da escola judaica, vemos Henry citar este mesmo tipo de atitude entre as famílias de camadas médias e altas ao comparar a postura destas famílias com as da classe operária:

 
Outro factor que pode ser necessário tomar em conta é o de os pais da classe operária poderem demonstrar demasiado respeito e deferência para com os educadores, o que impedirá a resolução conjunta de problemas. Por outro lado, os pais da classe média alta podem não colaborar bem com os educadores se os vêem como funcionários da escola, e não conseguir conferir a dimensão e a atenção adequadas ao trabalho com os professores para um fim comum (apud Silva, 2003, p.74).

        A relação família-escola em escolas de prestígio é próxima, estes pais investem muito na escolarização dos filhos. Mesmo as famílias das escolas bilíngües, que apresentaram as faixas mais altas de renda, são famílias atentas para com a escolarização de seus filhos. Estas elites não parecem considerar a posição dos filhos garantida por serem "herdeiros". Pelo contrário, parecem estar atentas na capitalização em suas trajetórias de uma estrutura e volume de capital que permitam o trânsito por campos valorizados socialmente.

        Na situação atual de sociedades globalizadas e altamente competitivas, restringem-se as posições, em todos os níveis das estruturas ocupacionais, e acirram-se as lutas por posições sociais nos diferentes níveis das hierarquias sociais. As elites econômicas, apesar de sua situação privilegiada em um país com as mais altas taxas de concentração de renda, em face de uma economia globalizada procuram obter recursos que garantam aos seus filhos a possibilidade de também se destacarem internacionalmente. O esforço de alfabetizar seus filhos desde a primeira infância em outras línguas demonstra os investimentos adicionados na escolarização. A importância da ampliação do capital escolar cresce em todos os setores e exige, dos que estão no ápice da pirâmide, novos patamares e sinais de distinção.

        Assim, estas famílias investem muito para manter seus filhos nestas escolas e têm expectativas altas em relação a elas. As famílias que estudamos no SOCED consideram como um dever da escola quase todas as opções oferecidas pelo questionário do survey.

        Ainda que tenhamos tido um baixo retorno de respostas dos professores, o que temos como indicação é que o investimento feito por essas famílias não é visto por eles como excessivo nem como um "sobre-envolvimento". Ou seja, os professores não ofereceram informações de que a atuação dessas famílias fosse percebida como interferências no seu trabalho. Nem os professores da escola judaica, ainda que seus coordenadores tenham dado depoimentos neste sentido falando de uma minoria na escola. Talvez no futuro fosse interessante focar a atenção da pesquisa nestes profissionais, uma vez que os coordenadores são os principais interlocutores das famílias.

        Na escola judaica pude observar em vários momentos a importância das redes sociais formadas através dela. Não só no objetivo de reforçar os laços da comunidade judaica como também na relação família-escola. Vemos que estas redes sociais colaboram para o fortalecimento do grupo de pais no "enfrentamento" com corpo profissional nos momentos de discussão. Os pais se conhecem, dessa convivência vem a conversa sobre os problemas da escola e a possibilidade de falar em nome de um "conjunto" maior. Mais do que a interferência do Diretório de Pais, pelos depoimentos dos coordenadores vimos como a definição de escola comunitária, ou seja, de todos, sustenta a atitude desses pais para tentar fazer valer seus interesses. A impressão é que a possibilidade de debater questões sobre a escola aumenta o diálogo entre a escola e as famílias. Os profissionais sabendo o que estes pais desejam tendem a fazer acordos, ainda que protejam com grande afinco e seriedade seu conhecimento técnico.

        Falar em famílias como um bloco único sempre restringe a realidade. A escola judaica não aparenta ser uma instituição com um só tipo de atitude. Mais do que uma instituição com um tipo de visão das famílias, o que existe são múltiplas relações que se estabelecem conforme os agentes envolvidos. Existem vários tipos de relação entre a escola e as famílias, podendo variar de intensidade e complexidade.

        O Diretório de Pais não funciona com a pretensão de se sobrepor aos profissionais do ensino. Sua posição é voltada para a gestão da escola, pensando na escola e trabalhando voluntariamente pela escola. Além disso, o seu esforço colabora para minimizar as dificuldades econômicas para os membros mais desfavorecidos da comunidade, assegura um ambiente judeu para os alunos, favorece contatos informais entre pais e a escola criando esta rede de conhecimentos que favorecem as negociações das famílias. É parte fundamental na escola porque o resto da comunidade de pais se sente mais "tranqüilo" ao saber que pelo menos 12 pais se encontram semanalmente para discutir a escola, observar e apoiar a instituição e seus profissionais no trabalho de educação dos filhos.

        É nossa hipótese que o Diretório de Pais ocupa aparentemente um espaço predominantemente simbólico na escola. Entretanto, a existência deste espaço definido de poder dos pais dá a dimensão do valor que essa comunidade confere ao acompanhamento e controle da formação escolar dos seus filhos. A topografia proposta pela dramaturgia sociológica de Goffman (2003) com o palco e os bastidores oferece uma boa sugestão do sentimento que experimentei ao privilegiar inicialmente o Diretório de Pais como lócus da análise das relações família-escola em uma instituição judaica. Inicialmente esta instância dominou o cenário da pesquisa, porém, gradativamente os bastidores atraíram a atenção do pesquisador, para tentar compreender o que não se explicava exclusivamente pela atenção ao palco. Este e outros movimentos me levaram a delinear ainda que de forma muito inicial uma certa "solidariedade orgânica" (Durkheim, 2004), fundada simultaneamente na diferenciação e na complementaridade, nas relações entre o Diretório de Pais e a equipe pedagógica.





1 Para explicar este tipo de amostra, Levin dá o seguinte exemplo: "para extrair uma amostra de revistas que reflitam valores da classe média norte-americana, poderíamos, levados apenas pela intuição, selecionar Reader's Digest, People ou Parade, uma vez que os artigos dessas revistas parecem refletir aquilo que a maioria dos norte-americanos de classe média deseja (por exemplo, a satisfação do sonho americano, sucesso econômico e coisas semelhantes) (1987, p.120)".

2 Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 200. Primeiros resultados da amostra – Brasil – Características Gerais da População – Tabela 1.1.2 – População residente, por situação do domicílio e sexo, segundo a religião. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso em 02 mar. 2005.

3 Sobre a distribuição e característica da população judaica ver: DECOL, René. Judeus no Brasil: explorando dados censitários. Revista Brasileira de Ciências Sociais – vol. 16 nº 46 p. 147-160.

4 Pensei que poderia concentrar minhas observações no 2º semestre, mas só aconteceu uma reunião e a minha presença foi considerada inadequada pelas coordenadoras e pela direção da escola. Consegui observar uma reunião de pais de 8ª série no ano seguinte, mas como era sobre um assunto muito específico apenas 6 pais das três turmas estavam presentes.

5 Verbete comunidade. In: Dicionário Crítico de Sociologia. BOUDON, Raymond e BOURRICAUD, François. São Paulo: ática, 2002, 2ª edição.

6 Relatório do grupo SOCED ao CNPq de 2003/2004. Disponível em: www.maxwell.lambda.ele.puc-rio. Periódicos Online – Boletim SOCED.

7 No survey, 92,6% dos pais da escola judaica assinalaram conhecer os colegas dos filhos e 55,6% deles assinalaram conhecer os pais dos colegas dos filhos.

8 Bar mitzva: o menino judeu ao completar 13 anos alcança a maioridade religiosa, para comemorar a data normalmente é feita uma cerimônia na sinagoga seguida de festa.

9 Os termos famílias "parceiras" e "misturadas" são categorias nativas do campo.





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